CRIATIVIDADE: UMA VISÃO INTEGRADORA

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Cleusa Kazue Sakamoto

O presente artigo busca uma visão global do fenômeno criativo através da experiência criativa, como objeto de estudo, uma vez que os estudos habituais da criatividade se apresentam delimitados à apreensão de aspectos de sua manifestação. Foram realizadas entrevistas com pessoas de diferentes áreas profissionais que relatam suas experiências com a criatividade e, utilizado como guia teórico, a teoria de desenvolvimento emocional de D.W.Winnicott, que representa uma abordagem original do fenômeno criativo. A pesquisa apresenta três novos elementos de compreensão da criatividade: a presença de um sentimento de apropriação que indica um compromisso com o processo criativo, a existência de uma ordem interna que rege as ações relacionadas à experiência e a existência de um espaço e um tempo próprios à atividade criadora.

Palavras-chaves: Criatividade; Winnicott; Afeição; Entrevistas; Desenvolvimento Humano.

 

 

INTRODUÇÃO

O estudo da criatividade apresenta, hoje, uma variedade de material teórico e de pesquisa, que segue tradicionalmente a abordagem de quatro aspectos mais frequentemente estudados: do ponto de vista da pessoa criativa, do ponto de vista dos processos mentais envolvidos no acontecimento criador, do ponto de vista da influência ambiental e cultural na emergência do potencial criativo e do ponto de vista do produto criativo.

Encontramos, entretanto, nesta grande quantidade de trabalhos voltados ao tema da criatividade, importantes lacunas nesta área de conhecimento, que indicam uma urgente necessidade de desenvolvimento da pesquisa básica. Wechsler (1993) nos oferece uma noção bastante clara a este respeito, através da apresentação do levantamento de necessidades anunciadas na Conferência Internacional de Pesquisadores em Criatividade realizada na State College University at Buffalo – New York, em 1990. Neste sentido, verificamos inclusive, uma ausência de discussões acerca da própria definição de criatividade e uma ausência de estudos que procuram tomar o fenômeno criativo dentro de uma visão mais integral, que nos ofereça uma noção de conjunto dos vários aspectos de manifestação num mesmo todo.

A situação atual do conhecimento da criatividade, consequentemente mostra a necessidade fundamental da construção de uma base teórica mais integradora sobre o fenômeno criativo, que nos permita um aproveitamento maior de toda a gama de informações existentes no assunto.

 Dentro desta realidade, é interessante constatarmos alguns dos problemas elementares, decorrentes de uma inadequada discriminação do significado e da utilização dos termos “criatividade”, “fenômeno criativo” e “potencial criativo”. Inúmeras vezes, estas designações aparecem na literatura especializada, mescladas de certas confusões e/ou sobreposições, quanto a uma clara significação e respectivo uso.

Criatividade, em nossa maneira de ver, em primeira instância, é manifestação do “potencial” ou da “capacidade” criativa, já que de imediato,  podemos dizer, que ela é uma ação ou expressão humana. Sendo “atividade” portanto, nos parece inadequada uma referência costumeira encontrada na literatura do assunto, que evidencia o ‘uso da criatividade’. Nestas oportunidades, nos parece mais indicado dizer que “nós realizamos a ação criadora” e sendo assim, podemos ainda, melhor qualificar os fundamentos da atividade criativa e resgatar a dimensão de “realização” associada à criatividade humana.

Na medida em que a atividade criativa se mostra mais voltada para aquilo que a identifica de modo mais essencial, naturalmente nos vemos impelidos a apresentar uma definição mais abrangente do que os conceitos usuais dados ao fenômeno, ampliando de certa maneira as perspectivas de pesquisa na área. Em nossas palavras, Criatividade é a expressão de um potencial humano de realização, que se manifesta através das atividades humanas e gera produtos na ocorrência de seu processo.

 É indispensável expressar ainda, quando se trata do estudo da atividade criadora, que este tema nos coloca em contato com interessantes compreensões sobre a natureza humana, uma vez que, através da criatividade, o ser humano realiza a construção de seu destino e do próprio mundo. Devemos acrescentar a isto, que através da atividade criativa, os seres humanos alcançam uma consciência sobre suas potencialidades, desvendam a condição genuína de sua liberdade pessoal e edificam sua autonomia, uma vez que através da criatividade, o homem existe e evolui, se expressa e, modela parcelas de realidade do universo das infinitas possibilidades humanas.

Considerando portanto, que a criatividade enquanto expressão humana de vida, se ampara no conjunto “indivíduo-processo-ambiente-produto”, reunindo os aspectos tradicionalmente estudados do fenômeno, encontramos na experiência criativa, o objeto de estudo que responderia ao nosso anseio da busca de uma visão integradora da atividade humana criativa.

O presente estudo, através da investigação da experiência criativa, estabeleceu o objetivo de buscar o alcance de uma compreensão mais global do fenômeno criativo, representando uma interessante contribuição ao campo de conhecimento do assunto, já que delineia possibilidades novas de reflexão e pesquisa. Acreditamos que, no mínimo, este estudo se apresente como uma tentativa válida que encaminhe a proposição de futuras iniciativas de novos projetos de trabalhos sobre o tema. É interessante colocarmos neste sentido, que encontramos em nossa pesquisa bibliográfica, um único trabalho prático que se dedica à investigação da experiência criativa, em Marsh e Vollmer (1991), fato que corrobora a necessidade acima mencionada.

Utilizando a teoria psicológica Winnicottiana, (1965, 1971, 1986) que compreende a criatividade sob o prisma da experiência relacionando-a ao potencial criador e inserindo-a no contexto do desenvolvimento humano, encaminhamos uma discussão acerca dos dados de nossa investigação e enumeramos novos elementos nesta área do conhecimento humano.

 

PARTICIPANTES

 Os participantes da pesquisa foram cinco pessoas adultas, duas mulheres e três homens, de idade entre 32 e 54 anos, todos com escolaridade universitária: - um arquiteto, de sexo masculino, com 54 anos que trabalha como autônomo em arquitetura e paralelamente ministra cursos de desenho; - uma artista plástica, de sexo feminino, com 53 anos, que é pintora da técnica da aquarela e ministra cursos desta técnica em instituições; - um psicólogo clínico, do sexo masculino, com 43 anos, que trabalha em consultório particular, é professor universitário e trabalha com treinamento de grupos profissionais; - uma pedagoga, de sexo feminino, com 34 anos, que é professora alfabetizadora numa pré-escola e coordenadora pedagógica de português e matemática no nível do primeiro grau do mesmo estabelecimento; - um administrador de empresas, do sexo masculino, com 33 anos, que trabalha como consultor autônomo em Qualidade, junto à empresas que pretendem obter certificados de qualidade para seus serviços.  Todos os participantes pertencem ao grupo de nosso relacionamento profissional há pelo menos um ano na ocasião das entrevistas e possuíam conhecimento prévio sobre o nosso envolvimento com o tema da criatividade no curso de pós-graduação.

 

PROCEDIMENTO

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, iniciadas a partir da proposição “fale-me sobre a sua experiência com a criatividade, da maneira que preferir”, seguidas de algumas poucas intervenções de nossa parte, no curso das colocações feitas pelos entrevistados.

As entrevistas foram marcadas previamente, de maneira que datas, horários e locais fossem os mais confortáveis aos entrevistados. Foram ainda, gravadas com conhecimento e autorização dos entrevistados e, transcritas integralmente.

O conteúdo de cada uma das entrevistas foi submetido a uma “pré-análise”, nos moldes sugeridos por Bardin (1995), nos quais se realiza uma organização dos dados coletados. A partir desta análise inicial, que naturalmente oferece um conjunto de elementos que se destacam em “unidades significativas”, encaminhamos a “elaboração de indicadores” de análise desta investigação.

No processo de elaboração dos indicadores de análise para a apresentação dos resultados, cada entrevista foi lida repetidamente, em separado e junto com as demais, de modo que suas partes espontaneamente se configurassem em temas. Posteriormente, todas as entrevistas foram reagrupadas, conforme as temáticas apresentadas uma à uma. Este último agrupamento temático, reunido num conjunto maior e organizado dentro de enunciados que receberam títulos (de acordo com as referências comuns dos relatos dos entrevistados), configura o produto final dos resultados obtidos neste trabalho, que estabeleceu o debate interpretativo neste estudo.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados da investigação se concentram em sete grandes temas que envolvem a atividade criativa: o conceito ou ideia que a representa, o potencial criativo, a função da criatividade, a origem da criatividade, os fatores facilitadores da criatividade, a ação criativa e as condições que favorecem a criatividade.

A maior parte destes temas encontrados no estudo apresenta paralelo ao corpo teórico escolhido, nos permitindo apreciar a amplitude da teoria de desenvolvimento emocional de Winnicott e sua contribuição ao entendimento da criatividade. Os pontos comuns mais evidentes entre os resultados encontrados e a teoria de Winnicott são: o potencial criativo, a função da criatividade, o fator facilitador da afetividade na criatividade, as condições ambientais ligadas à família e aos grupos que influenciam a manifestação criativa e ainda, o próprio conceito de criatividade – “como força motriz do desenvolvimento humano”, “como postura de vida” e ainda, “como expressão genuína do ser humano”.

 Os resultados do estudo em síntese, destacam que todo ser humano é dotado do potencial criativo, que se desenvolve e se manifesta de acordo com a presença de estímulos sociais e pessoais. Reforçam a ideia de que a função da criatividade diz respeito à construção do indivíduo e do próprio mundo humano. Referem a afetividade e a liberdade de expressão como fatores facilitadores da manifestação criadora – dado, que no nosso ponto de vista merece especial atenção, na medida em que a afetividade é o elemento nuclear na teoria psicológica de Winnicott (1965/1980, 1971/1975, 1986/1989) e é responsável pela ocorrência das condições necessárias que originam o gesto espontâneo criativo.

No pensamento do autor, através das relações afetivas do ser humano e o ambiente desde o início da vida, ocorre o desenvolvimento do sentimento de segurança pessoal que ancora o estado de relaxamento, que é fundamental à possibilidade de emergência do impulso criador. Nesta perspectiva, a compreensão de que a afetividade permeia o curso do desenvolvimento do potencial criativo, nos permite identificar os motivos pelos quais alguns ambientes, algumas pessoas e alguns processos se mostram mais criativos que outros. Em continuidade ao tema da afetividade presente na criatividade, encontramos também em nossa pesquisa, referência às condições ambientais que favorecem a manifestação criadora, quer seja através da família durante a vida infantil, quer seja na modalidade do trabalho em grupo, durante a vida adulta.

Finalmente, encontramos conceitos dados à criatividade enquanto “postura” ou “atitude” pessoal frente às situações cotidianas, que estão associados à ideia de uma “forma básica de viver” na concepção de Winnicott (1971/1975). Os resultados da investigação que não apresentam paralelo ou convergência com a teoria psicológica utilizada, por sua vez, se resumem à aspectos muito particulares da atividade criativa. Temos por exemplo, o conceito de que a criatividade “é o principal recurso de adaptação ao adverso”, referências à especificidade dos hemisférios cerebrais no acontecimento criador, ou ainda, referências sobre a manifestação criadora mais relevante em certos grupos, tais como as mulheres, os arquitetos e os publicitários.

Finalmente, para concluir, apresentaremos duas últimas observações. A primeira, diz respeito à verificação, nos relatos das entrevistas nas quais o enfoque foi dado à experiência criativa, menções naturais à pessoa, ao processo, ao produto e às condições ambientais para a ocorrência do fenômeno. Este dado confirma a hipótese inicial, de que a “experiência” reuniria espontaneamente, os aspectos habituais estudados da manifestação da criatividade. A segunda observação, que se mostra como uma consequência direta do enfoque dado à experiência, diz respeito à apresentação de três novos elementos relacionados ao acontecimento criador. Na criatividade podemos considerar a existência de:

  1. uma maneira peculiar de olhar um objeto, que consiste numa espécie de “apropriação” do objeto através da crítica, que permitirá a instalação do processo de uma nova criação do objeto;
  2. uma maneira específica de conduzir a atividade criadora, que indica que na criatividade não basta existirem ações, mas parece essencial que as ações envolvidas estejam reunidas sob um eixo de ordem através de uma dada organização, que pode estar relacionada às diretrizes da individualidade ou às peculiaridades do Eu;
  3. um tempo e um espaço próprios à atividade criativa, que destacam a importância da dimensão pessoal e de relacionamento inerentes à vida humana e que parecem balizar o acontecimento criador.

 

 

 

1 Extraído da Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profª. Dra. Edda Bomtempo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARDIN, L. (1977) Análise de Conteúdo. Trad. Augusto Pinheiro e Luís Antero Reto, Lisboa, Edições 70, 1995.

MARSH, D.; VOLLMER, J. The Polyphonic Creative Process: Experiences of Artists and Writers. Pittsburgh University, Greenburg. The Journal of Creative Behavior, vol.25, n.2, p. 106-115, 1991.

SAKAMOTO, C.K. A Criatividade sob a luz da Experiência: A busca de uma visão integradora do fenômeno criativo. São Paulo, 1999. 296p. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.

WECHSLER, S.M. Criatividade: Descobrindo e Encorajando. Campinas, Editorial Psy, 1993.

WINNICOTT, D.W. (1965) A Família e o Desenvolvimento do Indivíduo. Trad. Jane Corrêa. Belo Horizonte, Interlivros Editora, 1980.